Se as pessoas compreendessem nosso sistema monetário e bancário, teríamos uma revolução amanhã de manhã”, disse certa vez Henry Ford (1863-1947), um dos empresários mais bem-sucedidos da História.
Ele estava falando sobre os Estados Unidos. Imagine o que o fundador da Ford Motor Company diria, então, caso conhecesse os precatórios — mais uma aberração econômica, fiscal e jurídica made in Brazil.
Em resumo, os precatórios são dívidas do Poder Público com pessoas físicas ou jurídicas já reconhecidas pela Justiça — ou seja, sem chance de apelação. Assim, quando cidadãos e empresas processam qualquer uma das três esferas de governo (municipal, estadual ou federal) e obtêm ganho de causa, o Judiciário emite uma ordem de pagamento. Depois do trânsito em julgado, a dívida com os credores tem de ser quitada no ano seguinte. Isso teoricamente. Na prática, as sentenças judiciais são frequentemente descumpridas pelo Estado.
Ilustrando de outra forma, a situação é a seguinte: você (o cidadão pagador de impostos) sustenta quem lhe deve dinheiro (o Estado). E quem lhe deve dinheiro continua recebendo cada centavo sem pagar ao credor (você) nenhum real.
A família de Amedeo Augusto Papa Júnior, de 46 anos, é uma dessas vítimas do Estado. Sua mãe era sócia minoritária do Grupo Giorgi, detentor da marca Sal Cisne. Em 1973, uma parte das garagens e do edifício-sede da companhia — o Grande Avenida, localizado na Avenida Paulista — foi desapropriada pela prefeitura de São Paulo. “É uma situação complicada, porque esse tipo de desapropriação não atingiu apenas uma família. São várias pessoas envolvidas”, revelou o advogado, em entrevista concedida a Oeste.
Quando decidiu deixar a companhia, em 1982, a mãe de Amedeo fechou um acordo para ser indenizada. Parte do dinheiro foi recebida em pagamento de precatórios que uma das empresas do Grupo Giorgi possuía na prefeitura da capital paulista. No entanto, ainda restam pendências a ser quitadas pela administração municipal, como a correção pelo índice de inflação. “Esses complementos sempre tiveram a mesma prioridade que o precatório original”, explica Amedeo. “Você não voltava para o final da fila. Uma vez que o precatório complementar era reconhecido, havia uma ordem cronológica a ser seguida.”
Neste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma resolução determinando que os precatórios complementares sejam considerados novos precatórios — ou seja, precisam ser expedidos novamente. E o fantasma da burocracia voltou a atormentar a família de Amedeo. “Minha mãe foi indiretamente atingida por uma desapropriação e recebeu parcialmente o pagamento em precatório, mas ainda há dinheiro a receber”, salientou o advogado. “É quase como um bilhete de loteria que você ganhou, mas não tem um guichê para buscar o prêmio.”
Documentos do processo envolvendo a desapropriação do Edifício Grande Avenida, que tramita na 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, mostram que a dívida acumulada da prefeitura com a família de Amedeo ultrapassa a marca de R$ 1 milhão.
Não há a quem recorrer
Embora o pagamento de precatórios seja obrigação do Poder Público, seu descumprimento raramente é punido pela Justiça. “Se entro com uma ação contra o Estado, não posso proceder à execução da mesma maneira como faria se a ação fosse ajuizada contra uma pessoa comum”, explicou o advogado Adriano Ferriani, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio do escritório de advocacia Ferriani, Jamal & Fornazari. “Isso acontece porque os bens públicos não podem ser penhorados.”
Embora a União esteja sob os holofotes, Estados e municípios são os recordistas de inadimplência.
Em entrevista concedida ao programa Direto ao Ponto, da rádio Jovem Pan, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega criticou o descaso estatal na condução dos precatórios. “Gastar com advogado, comparecimento a tribunais… e no fim o autor morre e são os herdeiros que concluem o processo. Quando acaba essa saga de décadas, o governo diz: ‘Não pago’”, observou. “É inacreditável uma equipe econômica que se diz liberal, que sabe o valor da propriedade privada, propor a violação desse direito fundamental.”
O advogado e professor André Félix Ricotta de Oliveira, presidente da Comissão de Direito Tributário e Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), segue na mesma linha. “Se a União agisse de forma mais correta, teríamos menor acúmulo desses processos no Judiciário e menos precatórios a serem pagos”, argumentou. “É um contrassenso, um desrespeito ao cidadão que esperou longos anos em processos judiciais para conseguir o que lhe é de direito. Quando obtém algo, o Estado surge com uma PEC para fracionar esse pagamento, mudando as regras do jogo.”
Embora a União esteja sob os holofotes, Estados e municípios são os recordistas de inadimplência, com mais de R$ 150 bilhões de dívidas acumuladas em precatórios. Na esfera federal, por sua vez, o saldo devedor é de quase R$ 45 bilhões. Compõem esse passivo dívidas judiciais relacionadas a salários, pensões, aposentadorias, indenizações e desapropriações. Esse valor pendente de pagamento poderá ser multiplicado nos próximos anos, caso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios avance no Congresso Nacional.
Somadas, as dívidas das três esferas de governo chegam a quase R$ 195 bilhões, segundo o Mapa Anual dos Precatórios. O levantamento destaca que aproximadamente R$ 17 bilhões se referem à Justiça do Trabalho e R$ 12 bilhões ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Esses valores são acumulados anualmente, ou seja, somam as dívidas que não foram pagas pelo Poder Público desde que foram expedidas. Até 2017, mais de 80 milhões de processos sobre precatórios aguardavam desfecho no país.
Neste ano, a estimativa do governo federal é pagar cerca de R$ 55 bilhões em precatórios. Em 2022, a projeção seria de quase R$ 90 bilhões, mas esse valor deve ser reduzido para pouco mais de R$ 44 bilhões com a aprovação da PEC dos Precatórios. Os outros R$ 46 bilhões ajudariam a bancar o Auxílio Brasil, programa social que sucede ao Bolsa Família.
Segundo o advogado Adriano Ferriani, União, Estados e municípios são todos devedores. Mas a esfera federal, depois do trânsito em julgado da sentença judicial, não dá calote — pelo menos até a PEC dos Precatórios virar realidade. “A União vem pagando em dia. Os Estados e municípios são um caso à parte”, afirmou. “Depois que o precatório é expedido, a grande maioria não paga no ano seguinte, geralmente por falta de dinheiro suficiente para todos os gastos”, explicou o advogado. “Isso gera um enorme atraso. Os valores são corrigidos monetariamente. Mas, mesmo assim, muitas vezes o credor morre no meio dessa espera toda.”
Basta um clique
De acordo com os especialistas consultados por Oeste, a demora no pagamento de precatórios se deve a uma combinação de fatores que podem parecer contraditórios entre si: a burocracia dos processos judiciais no Brasil, com seus intermináveis recursos e apelações a diversas instâncias, e o avanço digital dos tribunais. Em entrevista concedida à Jovem Pan, Maílson da Nobrega analisou essa questão: “Antigamente, levava seis meses para o processo passar de uma mesa para outra”, explicou o ex-ministro da Fazenda. “Agora, é um segundo. Basta um clique. Os plenários virtuais tornaram muito mais eficiente o trabalho do Judiciário. Além disso, o Novo Código de Processo Civil reduziu a burocracia dos processos judiciais. Por isso, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça passaram a decidir muito mais rapidamente.” Nesse caso, a celeridade na resolução dos processos caminha em descompasso com o cumprimento das sentenças judiciais pelo Estado.
Diante de tamanha demora para receber o pagamento dos precatórios, muitos brasileiros recorrem a grupos que se especializaram na compra desses títulos para quitar pendências judiciais. Pessoas físicas ou jurídicas podem contratar empresas que intermedeiam a negociação desses créditos. Os credores recebem menos, mas de forma muito mais rápida do que pelos trâmites convencionais. A operação é legal e, dependendo da situação, acaba sendo vantajosa para quem tem dinheiro a receber.
Pesadelo triplo
Uma das empresas que fazem esse tipo de serviço é a Cashew Capital, da qual Adriano Ferriani participa. “Os sócios da Cashew são todos advogados e têm suas próprias bancas de advocacia”, revelou. “Percebendo a dificuldade para os credores receberem, vimos a oportunidade de criar uma empresa que intermediasse a negociação desses valores.” O advogado ressalta que os credores não ganham o valor integral, mas conseguem receber antecipadamente os precatórios. “Quem tem dinheiro para investir e não tem problema em esperar acaba tendo uma oportunidade de investimento a longo prazo”, disse. “O credor cede seu crédito para os investidores, ganha menos do que tinha direito, mas antecipa o recebimento e consegue tocar a vida.”
Esse desarranjo econômico, fiscal e jurídico também afeta a administração pública. O dinheiro para o pagamento de precatórios tem de sair das chamadas despesas não obrigatórias (discricionárias), consideravelmente menores que as obrigatórias (salários de servidores, aposentadorias e encargos da dívida pública). Em suma, trata-se de um pesadelo para as três esferas de governo, que sofrem com a escassez de recursos em razão do constante aumento dessas dívidas.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, manifestou ainda em dezembro do ano passado sua preocupação com o crescimento acelerado dessas despesas, que teriam ultrapassado os gastos com saúde, educação e segurança. “Não existia e, de repente, aparecem R$ 15 bilhões por ano”, observou, ao ressaltar que o país corre o risco de ser destruído pela indústria de precatórios. “Aí, pula para R$ 25 bilhões no governo seguinte. No ano que vem, serão cerca de R$ 40 bilhões. Será que estamos tratando do assunto corretamente?”
Idosos, os principais atingidos
Embora as contas públicas possam ser comprometidas em razão do acúmulo de dívidas relacionadas aos precatórios, é o pagador de impostos que sofre de fato com a falta de recursos. Para consertar suas barbeiragens na gestão econômica, o Estado pode imprimir dinheiro ou aumentar impostos. Apesar de ambas as medidas terem consequências catastróficas a longo prazo, resolvem um problema de curtíssimo prazo, permitindo aos governos gastar sem parcimônia. O brasileiro comum, todavia, não usufrui desse privilégio.
Postergar ou não pagar as dívidas com os cidadãos, portanto, atenta contra os mínimos requisitos morais exigidos de gestores públicos. “Um possível calote prejudicará milhares de pessoas”, alertou o advogado Álvaro Lopez, de 89 anos. “A maioria dos precatórios a serem pagos é relacionada à Previdência Social, como INSS e aposentadoria. É um dinheiro que é destinado aos pobres, que lutaram a vida inteira para se aposentar. Os idosos serão os principais atingidos pelo calote.”
Se Henry Ford conhecesse a confusão dos precatórios brasileiros, com certeza promoveria, ele mesmo, uma revolução antes do alvorecer.